PRESENTATION OUTLINE
Romance Realista
tese: pessoas que vivem inseridas na sociedade provinciana portuguesa criam expectativas pequenas
"— Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece. É a Quebrais! É a Pão e Queijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: o Carlos Viegas, o magro, de bigode caído, que escrevia comédias para o Ginásio! O Santos Madeira, o picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um gingão desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa enorme boquilha! O Pedro Câmara, o bonito! O Mendonça dos calos! Tutti quanti!"
"Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro Tavira. Sua mãe fora engomadeira; e desde pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem chamavam na vizinhança - o "Fidalgo", a quem sua mãe chamava - o senhor D. Augusto [...]
À noite o senhor D. Augusto voltava; trazia sempre um jornal; sua mãe fazia-lhe chá e torradas, servia-o, toda enlevada nele. Muitas vezes Juliana a vira chorar de ciúmes.
Um dia uma vizinha má, a quem ela não quisera ajudar a lavar a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe injúrias dos degraus da porta - gritou-lhe que sua mãe era uma desavergonhada, e que seu pai estava na África por ter morto o Rei de Copos!"
"Tinha para isso muitas razões, dizia: dormia num cubículo abafado; ao jantar não lhe davam vinho, nem sobremesa; o serviço dos engomados era pesado; Jorge e Luísa tomavam banho todos os dias, e era um trabalhão encher, despejar todas as manhãs as largas bacias de folha; achava despropositada aquela mania de se porem a chafurdar todos os dias que Deus deitava ao mundo; tinha servido vinte amos e nunca vira semelhante despropósito! A única vantagem - dizia ela à tia Vitória - era não haver pequenos; tinha horror a crianças! Além disso achava que o bairro era saudável; e como tinha a cozinheira "na mão", não é verdade? havia aquele regalo dos caldinhos, de algum prato melhor de vez em quando! Por isso ficava; se não, não era ela!"
"Desde que servia, apenas entrava numa casa sentia logo, num relance, a hostilidade, a malquerença; a senhora falava-lhe com secura, de longe; as crianças tomavam-lhe birra; as outras criadas, se estavam chalrando, calavam-se, mal a sua figura esguia aparecia; punham-lhe alcunhas - a "Isca Seca", a "Fava Torrada", o "Saca-Rolhas"; imitavam-lhe os trejeitos nervosos; havia risinhos, cochichos pelos cantos; e só tinha encontrado alguma simpatia nos galegos taciturnos, cheios de uma saudade morrinhenta, que vêm de manhã quando ainda os quartos estão escuros, com as suas grossas passadas, encher os barris, engraxar o calçado."
"Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras"
"Ficou sempre adoentada desde então; perdeu toda a esperança de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de amo em amo! Essa certeza dava-lhe uma desconsolação constante. Começou a azedar-se."
"As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um círculo de espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhes enodoar a pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia em rajadas. Começou a ser despedida. Num só ano esteve em três casas. Saía com escândalo, aos gritos, atirando as portas, deixando as amas todas pálidas, todas nervosas...(...)O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre assustou-a. Era fina, e dominou-se. Começou a fazer-se "uma pobre mulher", com afetações de zelo, um ar de sofrer tudo, os olhos no chão. Mas roía-se por dentro; veio-lhe a inquietação nervosa dos músculos da face, o tique de franzir o nariz; a pele esverdeou-se-lhe de bílis."
"A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar; odiou sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e pacientes; - odiava-a todas, sem diferença. É patroa e basta! (...) Cada riso delas era uma ofensa à sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. (...) Tinha visto morrer criancinhas, e nem a aflição das mães a comovera; encolhia os ombros: "Vai dali, vai fazer outro. Cabras!""
"Tinha visto morrer duas (patroas) - e de cada vez sentira, sem saber por quê, um vago alívio, como se uma porção do vasto peso, que a sufocava na vida, se tivesse desprendido e evaporado!"